terça-feira, 30 de novembro de 2010

Eu te quero às dez da manhã


Eu te quero às dez da manhã, a às onze, e ao meio do dia. Querer-te com toda minh'alma e com todo o meu corpo, por vezes mesmo, nas tardes de chuva. Mas pelas duas da tarde, ou, três, quando me ponho a pensar em nós dois, e pensas na comida e no trabalho diário ou no prazer que não tens com isso; te odeio silenciosamente, com a metade do ódio que tenho por mim.

E assim, logo volto a desejá-la, quando nos deitamos e sinto o que me faz, em algo que me diga em teus joelhos, ventre, enquanto minhas mãos me convencem que não há outro lugar, que tenha vindo, que vá, melhor do que o teu corpo. Vens inteira ao meu encontro, ambos desaparecemos por mero instante, adentramos a boca de Deus, antes que eu diga ter fome ou sono.

Todo dia te amando odiando, irremediavelmente. E há dias também, há horas, em que és-me estranha como mulher de outro. Homens me preocupam, me preocupo comigo, e meus pesares me distraem. É provável que não penseis em ti por muito tempo. Agora, veja: Quem poderia te amar menos, meu amor?



(Jaime Sabines. Adapt. Dom Ramon)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Enquanto o mundo morre


Duas tulipas, minha candura, para um debalde elegante; consorte rir e chorar. Abster ares bélicos, mesmo que por solene, efêmero, nulo, e simples momento.

Porquanto, na voz poetisa; "desprezível que pareça, ato falho dessa cena majestosa. Partiremos semi vivos e unidos, nesse elo de ternura e benfazejo".

E ao som contido de um declamar, tom de valsa, miúdo e contrito. Em paixão falada, amada amiga; pois retirados, escondidos:

Lembramos Drummond;

"(...)As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação".


Enquanto o mundo morre, candura, e dorme...

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A morte de São Sebastião



"Dê-me carros em chamas, Beltrame,

sons e fúria, Florença, Sodoma,

maravilha em sangue, fardas,

em tiros infames".





OBS: São Sebastião, de Rafael.

domingo, 21 de novembro de 2010

Nau


Estanque, no leito, o velho Almirante alistou:

"Na galera do mundo vive, e como brisa, bate em velas, esvai, fica o mar. Vida; sono da morte".

... Tornando-se negro o mar de seus olhos, quão noite, sem amanhecer jamais.





OBS: Fátima Ribeiro, O navio fantasma.
http://epwidos.sites.uol.com.br/mf/index.htm

Esquilianas


"Os deuses ajudam quem ajuda a si mesmo".

"A sabedoria é filha da dor, e nasce com muitas lágrimas".

"Um mar de inumeráveis risos (sobre o Mundo/Sociedade)".

"A força da necessidade é irresistível".

"A disciplina é a mãe do êxito".

"O sucesso: entre os mortais, este é um deus, ou melhor, mais do que um deus".

"Há poucos homens capazes de prestar homenagem ao sucesso de um amigo, sem qualquer inveja".

"Morrer bem é a suprema glória".

"Conhecerás o futuro quando ele chegar; antes disso, esquece-o".

"Toma coragem: o ápice da desventura não durará muito tempo".

"Ira é doença que os argumentos curam".

"Os sofrimentos humanos têm facetas múltiplas: nunca se encontra outra dor do mesmo tom".

"A verdadeira sabedoria está em não parecermos sábios".

"As palavras são um remédio para a alma que sofre".

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Louis Sutter




A pintar quadros lindos e perfeitos,
a tocar no violino sonatas sem defeito
e lindas - A Kreutzer, à Primavera -
aprendi, já faz tempo, quando jovem
corria para o mundo aberto e claro:
eu era moço, era louvado e era amado...
Mas certa vez me olhou pela janela,
a rir com a maxila descarnada,
A Morte - e o coração
gelou dentro de mim, gelou a mim
e me gela ainda hoje. Eu escapei,
vaguei de um lado para outro,
mas me pegaram e me puseram fechado
ano após ano, da minha janela,
por entre as grades, ela me arregala os olhos
e arregalada ri. me conhece. Ela sabe.
em papel grosso às vezes pinto homens,
pinto mulheres, pinto Jesus Cristo,
Adão e Eva, o Gólgota,
não perfeitos, não lindos, mas sentidos.
Com tinta e sangue eu pinto, com verdade,
e a verdade é terrível.
Recubro a folha, risca sobre risca,
mais alta, mais grudada, cinza, prata, preta,
e as pontas dos hieróglafos
deixo escresparem-se espalhados feito musgo
crepitarem como granizo seco, afilarem-se em espinhas de peixe
Cinzentos véus, redes de linhas finas, teias de aranha,
vento na relva, trança de raízes, caligrafias,
rabisco dez mil linhas em blocos e mais blocos,
lisas, inchadas, arrepiadas,
em plumas flamejantes, empinadas, esquivas,
poupo aos rabiscos os corpos de neve,
jogo Jesus no chão
sob o fardo da Cruz, voejam pássaros
como espectros num matagal de sonho, flores em flocos
a rir aflitas entre ervas murchas.
Eu às vezes esqueço,
eu às vezes conjuro tanta angústia,
eu às vezes escuto de distantes
anos de sombras, muitos anos, música:
Sonata a Krautzer... Mas na janela
sei que, nas minhas costas,
riem de mim.
Mas quem me conhece, quem sabe – é Ela.

(Hermann Hesse, Andares. Trad: Geir Campos)

O Intelectual Radical

Texto da palestra de Noam Chomsky apresentada no Centro de Abrigo, em Madison, Wisconsin, 08 abril de 2010.




Eu não tenho que dizer o quão satisfeito e grato sou por esta homenagem, que também oferece uma oportunidade para olhar para trás ao longo dos anos. O que vem à mente com relevância particular é a minha mais tenra idade, talvez porque eu tenha pensado muito sobre isso nos últimos tempos, por outros motivos. Nos meus anos de formação pessoal, digo, e acho, infelizmente, que a significância desses tempos primeiros vai além.

Eu sou antigo apenas o suficiente para lembrar dos discursos radiofônicos de Hitler há 75 anos. Não entendia as palavras, mas não poderia deixar de entender o tom de ameaça e as multidões frenéticas. O primeiro artigo político que escrevi foi em fevereiro de 1939, logo após a queda de Barcelona. Tenho certeza de que não foi nada memorável. Lembro-me um pouco dele, mas muito mais claramente o clima de medo e mau agouro. Iniciado com as palavras: "Áustria cai, cai a Tchecoslováquia, e agora cai Barcelona" - e a Espanha com ela, alguns meses mais tarde. São palavras que sempre estiveram em minha mente, juntamente com o medo, e a sensação de que as nuvens escuras do fascismo acolhiam a Alemanha e depois toda a Europa e talvez além, uma força crescente de horror inimaginável. Embora ninguém pudesse prever o Holocausto, Kristallnacht tinha acontecido apenas algumas semanas antes, a fuga desesperada de refugiados vinha se acumulando durante anos, muitos incapazes de acreditar no que estava acontecendo.

Naqueles anos, eu também tive a minha primeira experiência com os intelectuais radicais - embora eles não fossem chamados "intelectuais" como o termo é usado politicamente, aplicando-se a pessoas com status e privilégios que estão em condições de atingir grande público com pensamentos sobre assuntos e preocupações humanas. E uma vez que atribuem privilégio, a pergunta sempre surge sobre a forma como eles estão usando essa responsabilidade, temas muito vivos naqueles anos no trabalho de Erich Fromm, Russell e Dewey, Orwell, Dwight MacDonald, e outros, que logo vim a estudar. Mas os intelectuais radicais da minha infância eram diferentes. Eles eram meus parentes trabalhadores de classe, em Nova York, em sua maioria desempregados durante a Depressão, apesar de um tio, com uma deficiência, manter uma banca de jornais graças às medidas do New Deal e por elas capaz de ajudar e ser auxiliado pela família. Meus pais puderam ajudar os demais também, por seu viés. Como professores de hebraico em Filadélfia tinham o dom raro do emprego garantido, de modo que tivemos um fluxo de tias e primos permanecendo conosco periodicamente.

Meus parentes de Nova York na maior parte tiveram uma educação formal limitada. Meu tio, que dirigia a banca e foi uma enorme influência na minha infância, estudou até a quarta série. Mas foi um dos círculos intelectuais mais animados que já fiz parte, mesmo periférico e infantil na ocasião. Haviam discussões constantes sobre o desempenho recente do Quarteto de Cordas de Budapeste, das controvérsias entre Freud e Stekel, sobre a política radical e ativismo, atingindo picos impressionantes. Particularmente significativas na época foram as greves urbanas, apenas um pequeno passo dos trabalhadores em prol de assumir as fábricas e mudar radicalmente a sociedade - idéias que devem ser muito vivas hoje.

Além de fator importante mediante as medidas do New Deal, o crescente ativismo contra o trabalho despertou grande interesse no mundo dos negócios. Suas principais figuras advertiam sobre "o perigo que enfrentam industriais [com] o crescente poder político das massas", e a necessidade de intensificar "a eterna batalha pelas mentes dos homens", e instituir programas para superar esta ameaça à ordem e disciplina, posta de lado durante a guerra, mas retomada mais tarde com extrema dedicação e escala. Os EUA são incomuns entre as sociedades industriais em sua comunidade de negócios, altamente consciente de classe, incansavelmente travando uma guerra de classes amarga, e em anos anteriores, com níveis anormais de violência, posteriormente, através de ofensivas propagandas massificadoras.

Alguns de meus parentes estavam próximos ao Partido Comunista, outros foram melancolicamente anti-comunistas de esquerda, e alguns, como meu tio, eram anti-bolchevistas, mais à esquerda. Entre as pessoas próximas ao Partido, quando não existia ritualística obediência à Rússia, sentia que a maior parte focava o seguinte: direitos civis e movimentos de trabalho, reforma da previdência social, e muito necessária mudança social. O Partido foi uma força que não previu vitórias rápidas, mas esteve presente, pronto, persistente, dedicado à passagem de uma derrota temporária para a próxima luta, algo que realmente falta hoje. Também foi ligado a um movimento mais amplo de trabalhadores da educação e associações, e não menos importante, pois deu oportunidade para uma tia minha costureira desempregada passar uma semana em um Unity House fraternizada com outros que deveriam ter vivido sempre em um mundo muito triste. Ainda assim lembro da minha própria experiência pessoal - limitada, claro - como um tempo cheio de esperança, muito ao contrário de hoje, em circunstâncias que são objetivamente muito menos graves.

Em 1941, eu estava gastando tanto tempo quanto podia no centro de Manhattan, gravitando para outros grupos de intelectuais radicais, nas livrarias pequenas na avenida 4, local de atividade para refugiados anarquistas da revolução espanhola de 1936, ou no escritório do anarquista Freie Arbeiter Stimme em Union Square, nas proximidades. Eles também não se encaixavam na fórmula-padrão intelectual. Mas, se pelo termo significativo de serem pessoas que pensam seriamente sobre a vida e a sociedade, seus problemas e possíveis soluções, em contexto de conhecimento e compreensão, então eram de fato intelectuais: falo dos impressionistas. Eles estavam muito felizes por passar muito tempo com um garoto jovem fascinado pela revolução anarquista de 1936. Pensava então, e ainda penso, ter sido um dos pontos altos da civilização ocidental, e, de certa forma um farol para um futuro melhor. Eu apreendi um monte de material que usaria 30 anos mais tarde, ao escrever sobre o tema, estando a maioria ainda na Impressão.

Dentre os mais memoráveis destes materiais conservei uma coleção de documentos primários sobre a coletivização, publicado em 1937 pela CNT, o sindicato anarco-sindicalista - que está comemorando o seu centenário este ano. Uma contribuição documental que tem ressoado em minha mente desde então, sobre os camponeses da aldeia de Membrilla. Eu gostaria de citar partes dele:

"Nos [] barracos miseráveis [de Membrilla] vivem os pobres habitantes de uma província miserável, oito mil pessoas, mas as ruas não são asfaltadas, a cidade não tem jornais, nenhum cinema, nenhum café, nenhuma biblioteca .... Alimentos, roupas e ferramentas foram distribuídos equitativamente a toda a população. Dinheiro foi abolido, o trabalho, coletivizado, todos os bens passaram para a comunidade, o consumo foi socializado. Foi, no entanto, não uma socialização da riqueza, mas de pobreza .... Toda a população vive como em uma grande família, funcionários, delegados, o secretário dos sindicatos, os membros do conselho municipal, todos eleitos, atuam como chefes de uma família, mas eles são moderados, porque privilégio especial ou corrupção não serão tolerados. . Membrilla é talvez a mais pobre aldeia de Espanha, mas é a mais justa".

Nessas palavras, sobre alguns dos camponeses mais pobres do país, a captura com eloquência das conquistas e promessas da revolução anarquista. Conquistas não repentinas, como Sol primaveril. Elas foram o resultado de muitas décadas de luta, experimento, de repressão brutal - e de aprendizagem. O conceito de como uma sociedade justa deve ser organizada estava na mente da população, quando a oportunidade surgiu. A experiência de criar um mundo de liberdade e justiça foi esmagada muito em breve pelas forças combinadas do fascismo, do stalinismo e da democracia liberal. Centros de poder global entenderam muito bem que devem se unir para destruir essa perigosa ameaça à subordinação e disciplina antes de passar para a tarefa secundária de dividir os espólios.

Nos últimos anos tenho sido às vezes capaz de compreender em primeira mão, pelo menos, um pouco da vida das pessoas pobres que sofrem brutal repressão e violência na atualidade - nas favelas miseráveis do Haiti, no auge do terror nos anos 90, apoiado por Washington, sobre o qual os fatos ainda são reprimidos, e altamente relevantes para as tragédias de hoje. Ou em campos de refugiados do Laos, onde dezenas de milhares de pessoas se amontoavam, expulsas de suas casas por um exército mercenário da CIA depois de anos tentando sobreviver em cavernas abaixo de bombardeio implacável que nada tinha com a guerra no Vietnã, uma das graves atrocidades da história moderna, ainda desconhecidas, que continuam a matar muitas pessoas, porque a Terra está saturada com munições não deflagradas. Ou na Palestina e no sudeste da Turquia e muitos outros lugares. Dentre eles, particularmente importante para mim por motivos pessoais, é o sul da Colômbia, onde os camponeses, povos indígenas e afro-colombianos, estão sendo expulsos de suas terras devastadas pelo terror e pela guerra química, chamada aqui de "fumigação", como se de algum modo validasse um direito de destruir os outros países com pretextos que fabricamos - pessoas capazes da simpatia mais milagrosa e humanidade, apesar do sofrimento terrível em que desempenham um papel importante, ao olhar para o outro lado - embora não em Madison, graças ao trabalho do grupo de apoio aqui na Colômbia.

Uma das coisas que aprendi nas livrarias anarquistas e escritórios de 70 anos atrás foi que eu estava errado em tomar a queda de Barcelona em 1939 como a sentença de morte da liberdade na Espanha. Tombou dois anos antes, em maio de 1937, quando a classe operária industrial foi esmagada pela repressão comunista liderada com seus exércitos comunistas varrendo o campo e destruindo os coletivos, com o apoio das democracias liberais e com Hitler e Mussolini esperando nos bastidores - uma enorme tragédia para a Espanha, embora inglória vitória antecipada para os predadores.

Alguns anos depois eu saí de casa para estudos de pós-graduação em Harvard, onde tive minha primeira experiência extensa com o mundo da elite intelectual. Na chegada, fui à festa padrão da faculdade para os estudantes, alegrada por um filósofo muito distinto com um relato intrigante da Grande Depressão - que, ele me assegurou, não ocorrera em lugar algum. Foi uma invenção liberal. Não houveram trapeiros vindo à nossa porta em desespero no início dos anos 30, não foram mulheres trabalhadoras espancadas pelas forças de segurança, enquanto em greve em uma fábrica têxtil pela qual passei em um carrinho com a minha mãe quando eu tinha uns cinco anos, nenhum dos meu parentes desempregados. Que poucos empresários possam ter sofrido, mas nada além disso.

Descobri logo que este estava longe de ser uma exceção, porém não quero sugerir que era o típico dentre os intelectuais de Harvard. A maioria era "liberal a Stevenson", pessoas que aplaudiram quando Stevenson disse na ONU que temos de defender o Vietnã de "agressão interna", do "assalto de dentro", como colocara o presidente Kennedy. Palavras que ouvimos hoje de novo, por exemplo, no último domingo, no NYT, onde se lê que após a conquista de Marja na província de Helmand;

"Os fuzileiros teriam colidido com uma identidade Taliban tamanha que o movimento parece mais com a única organização política de uma cidade com um só partido, com uma influência que afeta a todos. 'Temos de reavaliar nossa definição da palavra "inimigo", disse o brigadeiro. General Larry Nicholson, comandante da brigada expedicionária de fuzileiros na província de Helmand. 'A maioria das pessoas aqui se identifica como o Taliban ... Temos que reajustar o nosso pensamento por isso não estamos tentando perseguir os talibãs de Marja, nós estamos tentando perseguir o inimigo para fora ", disse ele."

Um problema que sempre atormentou os conquistadores, muito familiar para os EUA do Vietnã, onde certo estudioso da liderança do governo dos EUA em um livro bastante elogiado lamentou que o inimigo interno fosse um único "partido verdadeiramente de massas baseado na política no Vietnã do Sul" e qualquer esforço nosso para competir com ele politicamente seria como um conflito entre um peixinho e uma baleia. Então tiríamos de superar essa força política, usando nossa vantagem comparativa; a violência - como nós fizemos. Outros tiveram problemas semelhantes: por exemplo, os russos no Afeganistão na década de 1980, uma invasão que também provocou indignação ao ponto de passarmos em revista os crimes de guerra. Especialista em Oriente Médio, William Polk nos lembra que os russos "tiveram muitas vitórias militares, também através de seus programas de ação cívica que realmente conquistaram muitas das aldeias" - e, de fato, como sabemos, a partir de fontes confiáveis, fora criada substancial liberdade em Cabul, especialmente para as mulheres. Mas, para continuar com Polk, "na década de sua participação, os russos ganharam quase todas as batalhas ocupando em um momento ou outro virtualmente cada centímetro do país, mas eles perderam a guerra .... Quando tangiram, os afegãos retomaram a forma tradicional de vida ".

Os dilemas enfrentados por Obama e McChrystal não são exatamente os mesmos. O inimigo a quem os marines estão tentando expulsar de suas aldeias não tem praticamente nenhum apoio externo. Os invasores russos, em contraste, estavam enfrentando uma resistência que recebeu apoio vital dos EUA, Arábia Saudita e Paquistão, e ainda dos mais extremados radicais fundamentalistas islâmicos que poderiam encontrar - inclusive aqueles que aterrorizaram mulheres em Cabul - e estavam armando-os com armas avançadas, enquanto cumpriam o programa de islamização radical do Paquistão: mais um dos presentes de Reagan para o mundo, juntamente com as armas nucleares do Paquistão. O objetivo dessas operações nos EUA não foi defender o Afeganistão. Foi explicado francamente pelo chefe da CIA em Islamabad, que coordenava as operações. O objetivo era "matar soldados soviéticos". Ele se gabava da "amada", desta "nobre meta", deixando muito claro, em suas palavras, que "a missão não era libertar o Afeganistão", que ele não gostava. Você está familiarizado eu tenho certeza com algo que Zbigniew Brzezinski também possui em seus meandros.

Até o início dos anos 60 eu estava profundamente envolvido em atividades contra a guerra. Não vou entrar em detalhes, embora eles pudessem nos dizer muito sobre o clima intelectual, especialmente na liberal Boston. Em 1966, meu envolvimento era profundo o suficiente para que minha esposa voltasse à faculdade obter um diploma depois de 17 anos por causa da probabilidade de uma longa pena de prisão - que chegou muito perto. O julgamento já havia sido anunciado, mas cancelado depois da ofensiva do Tet, o que convenceu a comunidade empresarial de que a guerra estava ficando muito cara, e em qualquer caso, os objetivos principais da guerra haviam sido atingidos - outra longa história. Depois da ofensiva do Tet, e a mudança na política oficial, de repente, descobriu-se que todos tinham sido adversários de longa duração da guerra - em profundo silêncio. Memorialistas de Kennedy reescreveram suas notas para apresentar o seu herói como uma pomba - perturbada pelas revisões radicais ou pelas provas documentais extensamente mostradas de que JFK iria considerar a suspensão de uma guerra que ele sabia ser impopular internamente somente após uma vitória assegurada.

Mesmo antes da ofensiva do Tet, houve crescentes dúvidas nesses círculos, não sobre o sentimental das noções de certo/errado que reservamos para nossos opositores, mas sobre a validade de sucesso retórico e prático da continuidade do "assalto de dentro". Um certo paradigma foi proposto nas reflexões de Arthur Schlesinger, quando estava começando a ficar preocupado se a vitória poderia ser tão facilmente apanhada. Como ele disse, "todos rezamos" para que os falcões tenham razão e que a onda do dia trague a vitória. E se isso acontecer, estaremos louvando a "sabedoria e sentido de Estado" do governo dos EUA em ganhar uma vitória militar, deixando "o trágico país eviscerado e devastado pelas bombas, queimado pelo napalm, transformado num deserto de desfolhação química, uma terra de ruína e escombros, com seu "tecido político e institucional" pulverizado. Mas a escalada provavelmente não terá sucesso e provará ser cara demais para nós, por isso, talvez a estratégia deva ser repensada.

Pouco mudou hoje, quando Obama é aclamado como um dos principais opositores da invasão do Iraque, porque foi um "erro estratégico", palavras que poderiam ser lidas no Pravda, em meados da década de 1980. A mentalidade imperial é muito enraizada.

É triste dizer, porém verdadeiro, que dentro do espectro do imperialismo liberal dominante são os "mocinhos". Uma alternativa possível é revelada pelas pesquisas mais recentes. Quase metade dos eleitores dizem que as medidas propostas pela Tea Party estão mais perto de seus pontos de vista do que o presidente Obama, a quem menos preferem agora. Há uma repercussão interessante. 87% das pessoas da chamada "classe política", afirmam seus pontos de vista próximos a Obama. 63% dos que são chamados de "americanos do Mainstream" dizem que suas opiniões estão mais próximos da Tea Party. Em praticamente todos os assuntos, os republicanos são confiados pelos eleitores mais do que os democratas, em muitos casos por dois dígitos. Outras evidências sugerem que essas pesquisas estão registrando desconfiança ao invés de confiança em algo. O nível de raiva e medo no país é imcomparável dentro do que posso lembrar na minha vida. E desde que os democratas estão no poder, há revolta contra o momento atual sócio-econômico-político atribuído a eles.

Infelizmente, estas atitudes são compreensíveis. Por mais de 30 anos, a renda real para a maioria da população estagnou ou caiu, os indicadores sociais têm deteriorado desde meados da década de 1970, após acompanhamento rigoroso do crescimento dos anos anteriores, o horário de trabalho e a insegurança têm aumentado, juntamente com a dívida. A riqueza acumulada, mas em poucos bolsos, leva à desigualdade provavelmente recorde. Estes são, em grande parte, as consequências da financeirização da economia desde os anos 1970 e o correspondente esvaziamento da produção nacional. O que as pessoas vêem diante de seus olhos é que os banqueiros que são os principais responsáveis pela atual crise e que foram salvos da falência por parte do público estão agora revelando lucros recordes e bônus enormes, enquanto o desemprego oficial fica em cerca de 10%. Na indústria transformadora observamos níveis de depressão; um em cada seis, com bons empregos. Os cidadãos querem respostas, e não estão sendo dadas, com exceção de alguns atores que contam causos com alguma coerência interna, entendida somente suspendendo a descrença entrando em seu mundo peculiar de irracionalidade e engano. Ridicularizar as travessuras da Tea Party é um erro grave, eu acho. Seria muito mais adequado estudar o que está por trás dela, e nos perguntar por que as pessoas justamente irritadas estão sendo mobilizadas pela extrema direita e não por forças como as de minha infância, nos meus dias de formação pessoal, do CIO e outros ativismos construtivos.

Para citar apenas um exemplo do funcionamento da democracia realmente existente no mercado, as ações de Obama foram todas de foro de acordo com instituições financeiras, que ganharam tal posição dominante na economia que o lucro empresarial passou de alguns por cento nos anos 70 para quase 1/3 hoje. Elas preferiram Obama a McCain, grande parte o apoiando em sua eleição. Esperavam ser recompensados, e foram. Mas há alguns meses atrás, respondendo à crescente indignação pública, Obama começou a criticar os "banqueiros gananciosos" que haviam sido resgatados pelo público, e ainda propôs algumas medidas para coagí-los. A punição por seu desvio foi rápida. Os grandes bancos anunciaram que mudariam favoravelmente de financiamento para os republicanos, se Obama persistisse com sua retórica ofensiva.

Obama ouviu a mensagem. Alguns dias após, informou ao meio financista que os banqueiros estavam bem "caros". Destacou porém elogios especiais para os presidentes dos dois principais beneficiários dos encargos públicos, o JPMorgan Chase e Goldman Sachs, e assegurou ao mundo dos negócios "Eu, como a maioria do povo americano, não invejo as pessoas de sucesso ou riqueza" - tais como os bônus e lucros que estão enfurecendo o público. "Isso faz parte do sistema de mercado livre", continuou Obama, de um modo objetivo, diferente do conceito de "livre mercado" que é interpretado na doutrina teórica de Estado capitalista.

Não deve ser visto como um acontecimento insólito. O incorrigível radical Adam Smith, falando da Inglaterra, observou que os principais arquitetos do poder eram donos da sociedade de fato, no seu tempo comerciantes e fabricantes, e se certificavam de que a política iria assistir escrupulosamente os seus interesses mais "graves" mesmo sobre impacto no povo inglês, e pior, mesmo nas vítimas da "injustiça selvagem dos europeus" no exterior. Crimes britânicos na Índia foram a principal preocupação de um conservador à moda antiga dos valores morais, uma categoria que um Diógenes poderia procurar por hoje.

Em uma versão moderna e mais sofisticada da máxima de Smith, "teoria do investimento da política", o economista e cientista político Thomas Ferguson tem observado em eleições surgirem ocasiões nas quais grupos de financistas se aglutinam para investir no controle do Estado, selecionando políticos que serão arquitetos servindo aos seus interesses. Sendo atestada análise como um indicador muito seguro da política por longos períodos, não sendo porém surpreendente. As concentrações de poder econômico naturalmente procuram estender a sua influência sobre todo o processo político. Fenômeno extremo nos EUA, como mencionei.

Há fértil debate nestes dias sobre se ou quando, os EUA vão perder a sua posição dominante nos assuntos globais para China e Índia, as potências mundiais em ascensão. Há um elemento de verdade nessas lamentações. Mas, para além de equívocos sobre a dívida, déficits, e a real situação da China e da Índia, as discussões são baseadas em um grave equívoco sobre a natureza do poder e seu exercício. Na bolsa e no discurso público, é comum ocorrerem alguns dramaturgos nos assuntos internacionais comentando que os Estados perseguem um objetivo misterioso chamado "interesse nacional" - divorciado da distribuição interna de poder. Adam Smith tinha um olho mais aguçado, e suas banalidades radicais fornecem útil corretividade ao tema. Com isso em mente, podemos ver que existe realmente uma mudança de poder global, todavia daquele que ocupa o centro do palco: uma nova transferência da força de trabalho global para o capital transnacional, fortemente aumentado durante os anos neoliberais. O custo é substancial, incluindo as pessoas que trabalham nos EUA, famintos camponeses na Índia, e milhões de trabalhadores protestando na China, onde a participação do trabalho na renda nacional está diminuindo ainda mais rapidamente do que na maior parte do mundo.

O economista Martin Hart-Landsberg observa que a China desempenha um papel de liderança na mudança real de poder global, fazendo-se em grande parte uma fábrica de montagem de um sistema de produção regional. Japão, Taiwan e outras partes da Ásia mantém economias avançadas e componentes de exportação para a China, e fornecem a maior parte da tecnologia sofisticada. O trabalho chinês monta e exporta. Para ilustrar, um estudo da Fundação Sloan estima que para um ipod de $150 exportado da China, cerca de 3% do valor adicionado é chinês, mas é contado como das exportações chinesas. Muita preocupação foi despertada pelo crescente déficit comercial dos EUA com a China, mas menos notado é o fato de que o déficit comercial com Japão e resto da Ásia tem forte declínio em relação ao novo sistema de produção regional tomando forma. Uma reportagem do Wall Street Journal concluiu que, se os valores acrescentados fossem devidamente calculados, o déficit comercial EUA-China real cairia até 30%, enquanto o déficit comercial dos EUA com o Japão aumentaria 25%. Montadoras dos EUA estão seguindo o mesmo curso, fornecendo peças e componentes para a China para montagem e exportação, principalmente com retorno aos EUA. Para as instituições financeiras, gigantes do varejo, gestão das indústrias e setores estreitamente relacionados com este nexo de poder, tudo isso é celestial. Não para os trabalhadores americanos, mas como Smith apontou, seu destino não é a preocupação dos "principais arquitetos da política".

É verdade que não há nada de fundamentalmente novo no processo de desindustrialização. Proprietários e gerentes, naturalmente, procuram o menor custo de trabalho; esforços para fazer o contrário, famosos por Henry Ford, foram derrubados pela Justiça: agora é uma obrigação legal. Um dos meios de produção está se deslocando. Nos tempos anteriores a mudança fora principalmente interna, especialmente para os Estados do sul, onde o trabalho poderia ser mais duramente reprimido. Grandes corporações, como a empresa de aço dos EUA do santo filantropo Andrew Carnegie, também poderiam lucrar com a nova força de trabalho escrava criada pela criminalização da vida dos negros após o final da Reconstrução, em 1877, um componente essencial da revolução industrial americana, continuado até a Segunda Guerra Mundial. Processo que está sendo reproduzido em parte durante o recente período neoliberal, com a guerra às drogas utilizada como pretexto para conduzir a população supérflua, a maioria negra, de volta à prisão, fornecendo também uma nova oferta de trabalho profissional nas prisões estatais ou privadas, tanto mesmo e com violação das convenções internacionais de trabalho. Para muitos afro-americanos, já exportados para as colônias, a vida tinha pouco escapado dos títulos de escravidão, e às vezes era pior. Mais recentemente, a mudança é em grande parte internacional.

Voltando à acusação de "banqueiros gananciosos", na justiça, devemos admitir que eles têm uma defesa válida. Têm por tarefa aumentar a participação do lucro e do mercado, na verdade essa é a obrigação legal. Se não o fizerem, serão substituídos por alguém ou algo que o faça. Estes são os fatos institucionais, como são as ineficiências dos mercados inerentes que lhes obriga a ignorar o risco sistêmico: até a probabilidade de que as operações acabem por prejudicar a economia em geral. Eles sabem muito bem que estas políticas são susceptíveis por cotas da economia, mas estes custos externos, como são chamados, não são os seus negócios, e não poderiam ser, não porque sejam maus, mas pela lógica institucional. É também injusto acusá-los de "exuberância irracional", reconhecendo brevemente Alan Greenspan tratando da realidade durante o boom artificial tecnologia dos anos 90. Sua exuberância e tomada de riscos foram racionais, na certeza de que quando tudo desabasse, eles poderiam fugir para o abrigo do Estado-babá, agarrando seus exemplares de Hayek, Friedman e Rand. A apólice de seguros do governo é um dos muitos incentivos perversos que aumentam as ineficiências de mercados inerentes.

Tão logo, ignorar o risco sistêmico é uma propriedade inerente da lógica institucional e incentivos perversos são aplicações da máxima de Smith. Novamente, nenhuma grande novidade.

Após o último desastre ocorrido, foi concordado entre os principais economistas a necessidade de engendrar um "consenso" desenvolvido "sobre a necessidade de supervisão macroprudencial" dos mercados financeiros, isto é, "prestar atenção à estabilidade do sistema financeiro como um todo não apenas como partes individuais "(Barry Eichengreen, um dos mais respeitados analistas e historiadores do sistema financeiro). Dois proeminentes economistas internacionais acrescentam que "Há um reconhecimento crescente de que nosso sistema financeiro está executando um ciclo apocalíptico em suas falhas, contamos com o dinheiro e as políticas fiscais frouxas para socorrê-lo, ensinando ao setor financeiro: apostar alto para conseguir bons rendimentos, e não se preocupar com os custos - eles serão pagos pelos contribuintes "através de salvamentos e outros dispositivos, e do sistema financeiro", portanto, criando o mecanismo para ressuscitá-lo para jogar novamente - e para falhar de novo. O sistema é um "circuito destrutivo", nas palavras do funcionário do Banco da Inglaterra, responsável pela estabilidade financeira.

Basicamente a mesma lógica se aplica em outros lugares. Um ano atrás, o mundo empresarial reconheceu que as companhias de seguros e grandes empresas farmacêuticas, desafiando a vontade popular, conseguiram destruir a possibilidade de grandes reformas na área da saúde - um assunto muito sério, não só para as pessoas que sofrem com o sistema de saúde disfuncional, mas mesmo em estreitas motivações econômicas. Cerca de metade do déficit que somos instruídos a lamentar é atribuível a gastos militares sem precedentes, passando sob Obama, e a maioria do resto dos custos crescentes do sistema de cuidados de saúde privatizados praticamente não regulamentados, único no mundo industrial, também único em seus brindes para empresas farmacêuticas - por oposição a vontade de 85% apenas da população. Em agosto passado, a Business Week teve uma reportagem de capa comemorando a vitória da indústria de seguros de saúde. Naturalmente, nenhuma vitória é o suficiente, então eles persistiram na luta, ganhar mais, também contra a vontade da grande maioria do público, outra história interessante que eu vou ter que deixar de lado. Observando esta vitória, o American Petroleum Institute, apoiado pela Câmara de Comércio e outros lobistas de grandes negócios, anunciou que vai usar o modelo das campanhas da indústria da saúde para intensificar em esforços sua propaganda maciça de convencer o público a julgar preocupante o aquecimento global antropogênico. Isso tem sido feito com grande sucesso. Os executivos dedicados a esta tarefa sabem tão bem quanto o resto de nós que a farsa liberal é real, e as perspectivas sombrias. Mas estão cumprindo seu papel institucional. O destino da espécie é uma externalidade que devem ignorar, na medida em que sistemas de mercado prevalecem.

Uma das articulações mais claras e mais comoventes do humor público que eu vi foi escrita por Joseph Andrew Stack, que bateu seu pequeno avião em um prédio de escritórios em Austin, Texas, há algumas semanas, cometendo suicídio. Ele deixou um manifesto explicando suas ações. Foi principalmente ridicularizado, mas merece avaliação mais justa, eu acho.

Stack manifesta traços de sua história de vida e que o levou a este ato final desesperado. Na história ele começa ainda um estudante adolescente que vivia em uma ninharia em Harrisburg, perto do coração do que foi outrora um grande centro industrial. Sua vizinha era uma mulher de 80 anos, sobrevivendo de comida de gato, "a mulher", viúva de um trabalhador aposentado do aço. O marido dela tinha trabalhado toda a sua vida nas usinas de aço da Pensilvânia central, com promessas de grandes empresas e do sindicato que, por seus 30 anos de serviço, teria uma pensão e assistência médica para olhar para frente em sua aposentadoria. Ao invés disso ele foi um dos milhares que não ganhou nada, porque a gestão da fábrica feita por incompetentes e corruptos unidos (para não mencionar o governo) usurpou os fundos de pensão e roubou sua aposentadoria. Tudo que ela tinha era o seguro social para viver (citando); Stack poderia ter acrescentado que sempre há um esforço concertado e contínuo de super-ricos e seus aliados políticos por usurpar, mesmo que camuflado por motivos espúrios. Stack decidiu então que não podia confiar em um grande negócio e se estabelecer por conta própria, apenas para descobrir que ele não poderia confiar em um governo que não se preocupava com e se as pessoas gostam dele, mas apenas observando os ricos e privilegiados, ou confiar num sistema jurídico em que, em suas palavras, "existem duas interpretações para todas as leis, uma para os muito ricos e outra para o resto de nós". Ou um governo que nos deixa com "a brincadeira que chamamos de sistema médico americano, incluindo as empresas farmacêuticas e de seguros [que] estão matando dezenas de milhares de pessoas por ano", com cuidado racionado em grande parte por uma desnecessária riqueza. Tudo em uma ordem social em que "um punhado de bandidos e assaltantes pode cometer atrocidades impensáveis ... e quando é feita a hora do trem da alegria para a sua queda sob o peso de sua estupidez e avassaladora gula, a força total do governo federal não tem dificuldade em vir ao seu auxílio dentro de dias se não horas". E muito mais.

Stack diz-nos que o seu ato de desespero final foi um esforço para mostrar que existem pessoas dispostas a morrer por sua liberdade, na esperança de despertar nos outros o seu torpor. Não me surpreenderia que tivesse em mente a morte prematura do trabalhador de aço que lhe ensinou sobre o mundo real enquanto adolescente; que trabalhadores de aço literalmente cometem suicídio depois de terem sido descartados no lixo. Mas está longe de ser um caso isolado, podemos acrescentar o seu e muitos casos semelhantes ao pedágio colossal dos crimes institucionais do capitalismo de Estado.

Há estudos pungente da indignação e raiva dos que têm sido postos de lado, programas estaduais das empresas, de financeirização e desindustrialização que têm fechado fábricas e destruído famílias e comunidades. Eles revelam o sentimento de traição aguda por parte do povo trabalhador que acredita ter cumprido seu dever para com a sociedade em um pacto moral com empresas e governo, apenas para descobrir que tinham sido meros instrumentos de lucro e poder, a partir de obviedades que tinham sido cuidadosamente protegidas por doutrinas institucionais.

A leitura do Manifesto de Joe Stack, com muito gosto, fez-me recuperar memórias de infância, e muito mais que eu entendia na época. A República de Weimar foi o auge da civilização ocidental nas ciências e nas artes, também considerada modelo de democracia. Através dos anos 1920 os partidos tradicionais liberais e conservadores entraram em declínio inexorável, bem antes do processo ser intensificado pela Grande Depressão. A coalizão que elegeu o General Hindenburg em 1925 não foi muito diferente da base de massa que jogou Hitler ao poder oito anos depois, obrigando o aristocrático Hindenburg a selecionar como Chanceler o "pequeno cabo" que desprezava. No fim de 1928 os nazistas tinham menos de 3% dos votos. Dois anos depois, a mais respeitável mídia de Berlim lamentou a visão de muitos milhões neste "país altamente civilizado" que tinham "dado seu voto ao charlatanismo comum e oco, e mais cruel." O público estava ficando aborrecido com a disputa política incessante de Weimar, a serviço dos partidos tradicionais aos interesses poderosos e sua incapacidade de lidar com queixas populares. Eles foram atraídos para as forças dedicadas a defender a grandeza da nação em defensa contra ameaças inventadas em um estado revitalizada, armado e unificado, marchando para um futuro glorioso, liderada pela figura carismática que estava realizando "a vontade da Providência eterna, O Criador do Universo ", como discursava para as massas hipnotizadas. Em maio de 1933, os nazistas haviam destruído em grande parte não só os partidos dominantes tradicionais, mas mesmo os grandes partidos da classe trabalhadora, social-democratas e comunistas, juntamente com suas associações muito abastadas. Os nazistas alardoaram o MayDay de 1933 como um feriado dos trabalhadores, algo que os partidos de esquerda nunca foram capazes realizar. Muitos trabalhadores participaram nas manifestações patrióticas enormes, com mais de um milhão de pessoas no coração da Berlim vermelha, juntando-se aos agricultores, artesãos, comerciantes, forças paramilitares, organizações cristãs, clubes esportivos, junto ao resto da coalizão, que foi tomando forma como um centro entrando em colapso. Até o início da guerra, talvez 90% dos alemães estavam marchando com os camisas pardas.

Como eu mencionei, eu sou antigo apenas o suficiente para lembrar aqueles dias de fria e ameaçadora ascendência alemã de decência à barbárie nazi, para usar as palavras do ilustre estudioso de história alemão Fritz Stern. Ele nos diz que tem o futuro dos Estados Unidos em mente em certas opiniões como "um processo histórico em que o ressentimento contra um mundo desencantado secular encontrará libertação na fuga e em êxtase de irracionalidade".

O mundo é demasiado complexo para a história se repetir, mas há, no entanto, lições para se manter em mente. Não há escassez de tarefas para aqueles que escolhem a vocação de intelectual crítico, seja qual for a sua estância na vida. Podem procurar e varrer as brumas da ilusão cuidadosamente planejadas e revelar a realidade nua e crua. Podem estar diretamente envolvidos nas lutas populares, ajudando a organizar os inúmeros Joe Stacks, que estão destruindo a si mesmos, e talvez o mundo, e se juntar a eles na liderança de um modo como caminhar em direção a um futuro melhor.


chomsky.info

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Nota de delírio


"To absent friends, lost loves, old gods, and the season of mists; and may each and every one of us always give the devil his due"

("Hob Gadling". Neil Gaiman, The Sandman)


A névoa do Porto fica mais densa que o habitualmente denso, e conserva mutante comigo saberes perdidos;

"Por todos os deuses, Homem, conte com o maligno acaso na horá má, e saiba que melhor é cair com os olhos fechados!"

Dizia assim velho baldo carcamano; Trépido; como citando uma frase de guerra ininteligível ao seu medo. Velho lobo. Dizia também ter conhecido Teseu, Orlando o enamorado e o furioso, Tamerlão, John Bart e Barth, os três cavaleiros de Pompéia, Caxias em Avaí. Arrogava ser o velho mais velho de espírito e mais moço de alma. Contava ainda navegando quase dez mil e tantos anos quando - morreu de repente. Morreu na cama, como se diz. Infausto fim inevitável de grandes corações.

Conheci bem seu onomástico, bem e baldo. Atravessador dos transmundos garboso, dos altos montes e das várzeas rápidas, dos gemidos alegres, dos aflitos berbéres, dos ditos de mandos, dos campos mandados, doutos chapelados, loucos enamorados.

Fui tripulante-agrimensor de reserva em seu navio, e nele mesmo perdi minhas duas pernas [Ataque de Leviatã, como digo]. Azar não morrer de pronto, como se diz também. Coisa funesta. É ver seus olhos enormes, censurando todas as coisas, e sua bocarra de todas as comodidades. Veneno fatal, vil apático. Sorumbático nadei. Desfalecendo em modorra de areias.

Digo o fato. Não conto mais que duzentos anos, amancado permaneço no Porto. Se conto? Com quantas conto? Conto causos em causas aos transeuntes que por maligno acaso cá acabam. Dentre céus e nascimentos, dentre os Infernos e os mementos, no eixo inverso de vazio e caos, promontório do Nada-Mundo, conta cá cantos um danado aleijado.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Leve delírio ao amanhecer

Vejamos nosso amigo, filósofo e vintista, derradeiro de seu milênio, carregado de sua Ciência dos Venenos. Anela a velha pergunta, seja romântica seja legalista, de um velho misantropo: Tem sentido a vida?

E não dizia o mais impressionistas dentre os impressionistas, Nietzsche, apreendermos primeiro as idiossincracias dantes das verdades? Ele, vítima de si, como bom trágico.

Aí o apodrecimento, decadência diriam, dos vazios de Heidegger, e os muitos divisíveis de Foucault e a proletariedade distinta do bom Sartre; bate cartão chamado liberdade, utopia, na fábrica do mundo.

Mundos, molas e organismos em continuum, pouco visível em suas contingências, impossível, sem suas contingências. Por sempre, causa eficiente de efeito causal. Necessário.

E nesse entremeio, das rusgas, dos adornos de uma aparência, fugaz, sempre fugaz. E o porquê, de fugaz? É a mão calejada de um mesmo Sísifo - diria Camus em sua volúpia noir - subindo sua pedra, para que caia, novamente, e mais e mais. É esse veneno, digo, Eu, é essa mente vertiginosa de independência violada, desapegada de seu absoluto, reconhecendo suas condições; além do livre-arbítrio, além do Destino, além do Bem e do Mal...

O Ser, em plenitude Ser.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

4 erros tucanos

I. O primeiro erro da campanha tucana foi o próprio candidato escolhido, José Serra. Antipático, dúbio, sinuoso, fraco aos olhos do eleitorado o suficiente para não vencer de uma simples funcionário da Situação sem qualquer atitude representativa anterior (em contraste ao calejado Serra). Ser o político mais forte de São Paulo, ter o apoio dos maiores colégios eleitorais, experiência representativa, tudo isso importa quando, e apenas quando, reflete uma aceitação ampla e nacional, aceitação vista em Lula refletida em sua candidata. Serra, tucaníssimo, resoluto em seus posicionamentos, jamais deixou de suster uma imagem excludente. Forçosamente em oposição ao muito superior carisma de Lula, hoje.


II. Tendo escolhido a Oposição não o pragmatismo de Aécio, pela rigidez de Serra, evidenciou imprudentemente suas intenções de contra-balançar a política hoje em altíssimo estimo do Governo. Imprudência terrível e fatal, e enigmaticamente para a felicidade da Situação, ainda sustentada. Sendo assim, sendo pedra do núcleo do PSDB, da chamada "política de direita", tentou aparentar uma postura multifacetada na campanha. Atitude contraditória e atrapalhada: tentou vender uma afinidade com Lula, criticando o Governo os principais pontos do Governo, obscureceu FHC em prol de uma autonomia, tentou utilizá-lo como segurança de sua capacidade política, vendeu propostas absurdas, fantoches e factóides, quis ser gentil com todos e moralista. Todos esses movimentos mal executados demonstraram superficialidade em seu desempenho.


III. Serra escolheu um jovem político enquanto seu Vice. Medida que poderia ser sensata, se o Vice no Brasil fosse mais do que bengala, e se o discurso arcaico e moralista adotado não derrubasse seu próprio comportamento de intuito fraternal: apelou para a fé, família, valores tradicionais, com sofismas no objetivo tacanho de desmoralizar a candidata adversária. Tentou propagar sensacionalismos na atitude pragmática de Lula, sem subserviência ao Capitólio, como um desejo revolucionário (mentira, talvez, infelizmente), socialista, marxista, maoísta e tudo que é martelo e foice. Exagero absurdo distante da realidade efetiva, suficiente para não ser levado a sério pela população que nem mesmo poderia compreendê-lo. O centralismo real do Governo, sendo mitificado pela incapaz Oposição, passou inócuo pelo voto.


IV. Toda tipo de acusação foi feita contra a candidata Dilma. Incluindo o Papa dando parecer e dissidente recuperado. Mas, quando Serra precisou mostrar superioridade de articulação, quando no início do segundo turno a disputa estava equiparada, o tucano afinou. Dilma cresceu, deixou a postura tímida, apropriada para o quem está por cima, para atacar. O debate público, a possibilidade de Serra justificar 50% de seu discurso; melhor capacidade política, experiência, mérito; foi disperdiçado por ele mesmo. Com propaganda ruim e uma atitude frouxa, o carcamano conseguiu o grande feito de perder de um modo absolutamente evitável