domingo, 10 de abril de 2011

Amizade Estelar

"Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois navios que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos – e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol. Parecendo haver chegado ao seu destino e ter tido um só destino. Mas, então, a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo – ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é da lei acima de nós: justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos – elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. – E assim crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra".

(Nietzsche, A Gaia Ciência, aforismo 279)

sábado, 9 de abril de 2011

Clinâmen


Os aclives de sono e fadiga estereografados no olhar turvo declinando em um mangue memorial. Você passa pelos carros e não sente os transeuntes. A rua toma a direita e a esquerda e a pura vontade cega empurra mente e pernas.

A noite faz um dia artificial. É a hora da bruxa, como dizemos. Das duas até a casa das quatro da madrugada. Certo, preciso, ilusório. A noite é mesmo um outro lugar em um mesmo lugar. Dizem que por alguns becos e desolações, em grandes cidades, deixam o turno do dia para os respeitáveis, o pai de família, trabalhador, estudante normal; serviços de função; encarregando a ronda noturna de todo os indesejáveis na primeira categoria. Serviços do vício e da neurose. Do risco da aventura e da suspeita da morte.

É a troca de jurisdição, o político pelo inexorável.

É um mundo diferente. Um ambiente inóspito e regado de todo tipo. Legistas, frentistas, taxistas, bandidos, milicianos, prostitutas, moços namoradeiros, pessoas em noite de lazer, assassinos, todo um arsenal móvel da mais pura pólvora. Um mundo barulhento e cheio de silêncios, brutal e por vezes lúdico. Casas de show e boca de fumo, senhoras orando nos montes e o sátiros declinados nas ruas. A vida outra.

Caminhando. Mãos nos bolsos, noite fria. Nas vitrinas, na verdade, vitrines, as comidas, as roupas, as pessoas nas cadeiras, entre grutas escuras. A vida em seu mais metódico ritmo: e só pensamos em ideias simples. Uma casaca, sopa, o cheiro do café. E o Natural; sempre imenso; em sua hora de agonia, sua distância, seus humores de chuva, em contrapeso com nossas pequenas dificuldades, questões, anseios e privações, nossas lutas, nossas reticências, nossos ditos, nossos desencontros; arco, contrapeso e força inversa de algo tão efêmero, contra potências enormes... Nós nos encontramos, em nossas pequenas alegrias, e de casacas e sopas, encontros casuais, continuamos enfrentando o medo do escuro: os obscuros de nossa mente, a quietude de tudo que nos espera no Universo, nossas próprias mazelas. Conscientes ou não, sempre marchando, contra a náusea de uns e o absurdo de outros, sempre contra a incompreensível derrota. Morte. Contra ela nossas vidas.

A hora de distância estrelar, quando a imensidade fundamental das trevas releva o mais profundo indito. Quando o homem caminha por um mundo rebaixado, declinando também em seus passos por uma estrada de fantasmas e adágios.

Estrelas no alto,
e o neon cá baixo.

Caminhando, caminhando...

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Écloga


E do tempo já não espero mesura,
Agrado meu do qual jaz fortuna.
Desesperança meu falar rouco, e da vida - tão pouco
leva e trás meus alentos, leva e trás; soerguimentos.

Amanhã esquecido, passado escondido
Aurora e meia falta e implora -
Nada mais encontrar!
Porto ou meio de se abrigar!

Escuso, refino meu retino,
casebre de jardins e paineiras
com meus papéis lendo
(versos de bom e velho Quevedo):

"De tudo quanto ignoras te aproveitas;
prêmios não buscas nem padeces danos,
tanto mais vives quanto mais te estreitas"

domingo, 3 de abril de 2011

El Chugo


Guardo uma carta de rei de paus na carteira. O Lavrador. Costume, não superstição.

Meio maço de dunhill de velhos cigarros que não fumo e não jogo fora no bolso. Despojado e aguardando no balcão. Foi um dia quente e úmido dos piores - digo ao balconista - Espero meu camarada PV. Impossível não reconhecê-lo com seus ares apressados, corpo pequeno e compacto, parrudo até, tipo que engana pela aparência: professor de karatê kumite e determinado feito animal rapace. Fiquei surpreendido com a ligação, tudo que eu não esperava era um distante conhecido dos tempos de jogos e faculdade procurando os velhos amigos. Não sei se a sensação foi boa ou ruim; com certeza, bem diferente. Não sei se estou melhor, ou pior; com certeza, diferente.

Conheci a criatura passando da Cidade de Deus para a Cidade dos Homens, por assim dizer: bebemos Babilônia até vomitar repetidas vezes em vômito seco. Diferente é pouco. Eu sou outra criatura. Estou mesmo parando de fumar, assim como praticamente não bebo; mantendo minha independência e sobriedade, à regra. Continuo gostando bem mais de andar pelas ruas, no oposto de ficar sentado em um bar afundado. Restaurantes, nem me fale, não era a nossa. O lugar é bem o tom da turma de outros tempos, discreto e casual. Toca "Bring on the night". Donos de bar com bons ouvidos! Ele ainda escuta P.O.D. e Run DMC, música latina? Novos sons ou clássicos? O tempo é também rapace.

Meu amigo chega um pouco atrasado como é hábito [Pontual, só conheço eu mesmo]. E em segundos estamos voltamos ao clima - Noite agitada, hein? - diz sem as formalidades de apresentação - El Chugo! - meu adágio da época (significa tanto apelido mariachi quanto lealdade em "japonês").

Mostro o rei de paus, irônico, e vamos ao debalde... Nós somos mais rapaces que o Tempo.