segunda-feira, 30 de maio de 2011

sábado, 28 de maio de 2011

Os servos


Perdoo nos cães comportamentos que não aceitaria nas pessoas. É uma das visões de nossa fauna típica que não deixo de notar, e até com gosto. Meu pequeno bairro de poucas e velhas ruas, com velhas famílias, já foi apenas mais uma estância entre a Fazendo de Santa Cruz - hoje um estabelecimento militar no qual cometi a estupidez de quebrar uma centenária maçaneta - e o Rio propriamente dito. Campo Grande era, então, um campo grande. Um jardim, entre a incontinência do Imperador Epicurista e a Corte burocrática. O filho, o Estóico, preferia os ares europeus da Serra.

Éramos antes campesinos, antes proletariado ruralista, de bens de serviço, e somos agora quase pequenos burgueses. A presença rural veio diminuindo conforte a então capital e cidade turística de referência veio chegando. A interligação dos subúrbios formou a grande aldeia de pedras que o Novo Mundo forma em imitação ao Velho: é possível hoje ir da Terra do Fogo ao Alaska pisando asfalto.

Vi vaqueiros manejando gado por ruas, hoje, não existem. Nem mesmo carroças. Tudo são carros e bicicletas: e somos praticamente asiáticos por elas. Os pombos, os ratos - e parecem ter desaparecido - os gatos; todas as pequenas criaturas que fizeram do humano seu ambiente, vagam e vagam. E também os cães.

O servilismo do cão é enganoso. Pensa-se nele como covarde e submisso. Engano. Analisando o comportamento canino é evidente uma certa ética de caçador, um porte marcial. Desconfiados de seus territórios, atentos, parecem anelar com perfeição o ceticismo com a credulidade mais devota. Sempre se arriscam por um benefício, e sabem suplantar as dificuldades individuais por uma necessidade coletiva. É uma natureza de sentimento que a repugnância de nossas relações ordinárias não reconhece. Inveja, hipocrisia, ostentação, são vulgaridades que deixam de existir em um hospital de campanha.

Eles vagam. Servos, aquartelados, ou vadios em bandos mercenários. Nada podem ensinar. São os lobos fracos. Mas em algo nos superam: Não são hipócritas em sua solidariedade.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Dans le Port



Caminho ao largo com os cães vigilantes cruzando as ruas, as brumas, viandantes nas gruas, de uma noite bem fria. E os ares convidam: ao largo, descendo pelas visões distantes. Na névoa serena.

Em meu pensamento lembranças de minhas inquietações; desejos, demais desejos. Todas preservadas em meu notebook de textos, na mochila de outras inúteis iguarias; dobras dos historicismos analíticos, existencialismos de uma Ciência complicada, nos raros versos sentimentais, nas relações com minhas criaturas; amigos, contatos, carinhos, afetos; das quais sou criatura, nas trouxas das roupas, nos recortes registrados enfim, nos esboços perdidos de cá, nos móveis de tempos da velha paz.

Casas. E logo além, a sombra de nossos pequenos vales. Iluminado nos faróis dos carros, nas luzes de uma imitação de cidade. Enveredo pela noite, e em nossa planície, de vagas escondidas nas trevas, em áreas virgens.

...

Atrás o murmúrio branco. Vozes e notas de uma primeira despedida. Minha gente, minhas coisas, o lar acolhedor, as minhas notoriedades. O céu, escuro, de um caminho decidido. Seguir em frente e na mochila aquele meu pequeno mundo. Apenas. À certeza: É o ato que nos define. O decidido feito que nos marca. Daqueles meus tempos de amadurecimento, e eu pensava, e hoje lembro:

"Caminhar
Caminhar, caminhar"

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Rainha de Veneza


Does it go from east to west
Body free and a body less
Come again just to start afresh
Once again to find a home
In the moment of the meantime



Fico desorientado por seus movimentos, caindo de um lado, e outro, em seu balanço que não me deixa desviar o olhar. Oriental? Ocidental? Tão próxima e cômoda, como quem já nasceu para tal, agradar dançando, assim. Beldade que reconheço, e assim, somente.

E desce, estica seus dedos pelo piso liso. Olha cobiçosa o desvão; contando as notas. Pitoresca. Em seus trajes de classe, máscara grave, e é difícil entrevê-la. Minha bela, "De onde você vem? Para onde você vai?"

Termine a dança, e recomece. Faça assim, para o seu novo amigo dentre muitos. Gire no pedestal, lâmina de prata, fito de chuva no terreno negro. E nos olhe: são nossos olhos de vaidade.

Aceite, é mais um gracejo tolo. E não acredite. Não estamos íntimos? "De onde você vem? para onde você vai?"

E todos queremos declamar:

"Amamos, ô, rainha veneziana
A melhor que viram
nossas cabeças esquentadas
E todos declamamos: Veneza tem sua rainha".

Descrente e convicta. G.L.O.R.I.A. Já é hora de partir, deixe os outros como sempre; não diga, apenas venha. G.L.O.R.I.A. Vejo, beira o mar, seu olhar acompanhando o Sol que nasce, é o nosso beijo de partida. De todas as noites, todas as manhãs. Minha rainha pública e particular. De seu amigo.

G.L.O.R.I.A.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Chuva D'Ouro


No retrato seu rosto leve, cabelos encaracolados, sorriso franco, olhar de candura acolhedora. Carrego comigo. É o rosto que alguém pode desejar ao chegar de um mero dia chuvoso, ou de uma longínqua viagem. Ou olhar e entreter, quando quiser pensar em tais estâncias. De um retiro do mundo. As mãos acolhedoras da natividade.

O trem ritmava cada impacto vagão em vagão. Um "tafi-tafi" contínuo. Rostos entrando e saindo pelas estações; primeiro abundantemente, e então lento esvaziamento de fisionomias. Enquanto o móvel percorre casas, visíveis borrões, quebrando o Espaço. O trem preserva o sentido de deslocamento sufocado no subterrâneo mudo de um metrô. E fico pensando naqueles messiânicos "trens-bala" cortando fatias do globo por linhas finas e curtas como fazendo turismo nas equações de Einstein. Mas aqui é lento, as casas são borrões em série, e não desgrudamos do ritmo mais lento do mundo totalmente.

Deslocamento. Para aqueles que gostam de viajar, o sentido de ir sem pretensões por condições quais sejam, sem pretensão maior de chegada; é o vivo desejo e primeiro satisfazer. É a primeira motivação. As ruas, as gentes, as estradas, pequenas pensões, matas altas, o reencontrar de lembranças em suas materialidades ou o encontrar de amigos, novos horizontes, frescor de novos amores. Mesmo no olhar distante, ou da distância, sentir o acolhimento carregado na roupagem da pele, aos lábios, aos ouvidos, a ventura sutil de um caminho para seguir ou retornar.

Retorno. Depois de muito tempo enfim.

Ao amanhecer. Orvalhado e translúcida aurora feita como chuva de ouro. Estou em terra, meu ano. Sinto o aroma que me pertence e pertencerá: Estou em casa.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Finiverim - A parábola



"Velho e febril bibliômano, procurando em velhas negras e renegadas estantes por antigo relicário (maior e sublime dentre os relicários), prova última de sua paixão, sucumbiu em desvário. Ao encontrá-lo portanto, atônico, pungente, nele o relicário colossal fantasma; sacro escrito, guardado, palavras em mortuária fatura. Jamais existidas.

Dizia assim;

O mais forte suplanta o fraco, e o múltiplo abandona o único. Danado; derradeiro dos fortes, único e invariado. Danado do passado, anelo ao passado, força sem poder. Poder, sem haver. Extensão sem contingência, potência sem vontade. Finado, homem último, finadas, palavras caladas, finado, medos aceitos, finado, verbo não-dito, finados, miríades miríades de corpos, finados, miríades de seres, todos os fins, todos os inícios, factus eum... E tu, olho que observa, é o pó do vazio, e o abismo, e o desuso, próprio abismo que contempla. E ele é tu, e tu, nada

Cinzas de um velho deus, sagrados escuros. Sucesso de quem tudo desejava reter, e tudo verter. E o sucesso foi ser retido, e pela morte retirado, eliminado, em magnitude, extingido. Pois ao soar de - nada - Bibliômano inexistiu. Jamais, e em qualquer tempo. Meu amigo,

Aureliano... Teu nome nunca dito: Aureliano".




.
Eu lhe ofereço minha vida.
Você pode me dar eternidade?
O mundo é tão vazio
Eu não posso viver e não quero mais
Eu lhe ofereço minha vida.
Você pode me dar eternidade?
.
(Exitus, E Nomine)

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O Mau Ladrão


Sabe o porquê do povo escolher Barrabás?

Na real, a espada vale mais que a palavra. Toda verdade tem sua força, mas nada é páreo para a força da própria força;

E estou na tensão do fio.

No Velho Oeste Carioca, como em todo o resto da Capital, os boêmios encontraram um adversário temível nos últimos tempos: a embriaguez. O Choque de Ordem farejando em todos os cantos carros ébrios, pela felicidade dos turistas, e pelo café dos guardas, e pelo voto do Governador. "Todo mundo feliz"; Quem?! Quem não bebe, dirigindo, depois do horário comercial? Gente casta já está na cama, é o porra que vaga pelas madrugadas para a alegria do Sistema querendo mostrar serviço. Com quem, hoje, e agora? Comigo.

O animal de nossa sociologia não é um Leviatã cheio de tentáculos, mas uma Hidra, de três cabeças prontas para morder: força policial e a Lei, milicianos e justiça interna, assunto de traficante. É preciso se ver com as três. Nos assuntos de traficantes, o perigo ambulante pronto para matar por vinte reais é o viciado alucinado, chegando perto do fim da linha - quero dizer, quando o sujeito deixa de viver para vagar como uma mosca ao redor de bocas de fumo. É um bicho avulso perambulando atrás de qualquer problema por um dinheiro rápido. Roubar, vender os pertences da família, vez por outra em conjunto até mesmo uma blitz. O drogado mais característico na verdade vive nas doses homeopáticas do vício. A família muito dificilmente abandona de todo. E assim mesmo que não se pense no traficante como um gênio e industrial do desamparo, pois estão todos nos limites de suas ignorâncias. Quais são seus desejos? Tênis de marca, e um funk com seu nome.

Com a milícia outros quinhentos, e vez por outra em notas de cinquenta. O miliciano não é um bandido movido por necessidades ou desespero, é outra categoria. O miliciano faz aquilo que a polícia não faz, e daí, juiz, advogado, e esfolador de sua própria justiça. Hoje a coisa anda capitalizada, ainda assim é mais complicado lidar com os milicianos. Entender sua justiça, e passar longe de sua punição. Esqueça os acordos; ele não vai barganhar em sua particular sentença, apenas no resto.

E ainda, olhe só, é um cretino policial verdadeiro. Vejo pelo espelho o andar molejado, o corpo rotundo, o ombro de bronco. O miliciano, sendo de reserva, afastado, ou aposentado, perde os cacoetes. O policial corrupto é pior que o bandido e o miliciano juntos. É o desdém do primeiro com o oportunismo do segundo, guardado pela hipocrisia da Lei, da justiça técnica. Ele só quer o mandar, e o tirar uma grana. Fazer fortuna contra seus vizinhos. É o tipo mais desprezível e mais frequente: é bem certo que perderei alto aqui, e o cretino vem devagar. Parece gostar, e pela olhada no meu carro, vem contando dividendos.

Contra todos os meus justos temores os casos extraordinários: O simples policial, fazendo o seu serviço, doido pra dormir. Concursado sem esquema, plantonista, pequeno salário e família respeitada e saudável. O tipo que não vai aceitar "cafezinho". Então a honestidade aparece, viva, real, embaraçando as nossas conformidades.


Pede meus documentos, desço, o bafômetro me dana. Acontece. É justo. Vez por outra, o condenado arrependido ganha o rodízio no paraíso. Nem só de maus ladrões é feito o Calvário, não é verdade?

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Curto Réquiem



Na ocasião da morte de meu avô, caminhei com meu pai pelas alamedas do cemitério urbano. Pedras e mármores, as plantas e o Sol fraco no céu. Início de Outono. Lembro reparar em uma velha lápide com alguns rostos orientais; pensar nas muitas gerações asiáticas no início dos tempos migrando migrando ao Leste, pensar nos seus primeiros ancestrais de cultura tipicamente nipônica, pensar nas mulheres, nos possíveis samurais e camponeses, nobres e senhores de feudo. E ali estavam. Talvez, vivendo como memória e sangue em descendentes aqui no mais extremo e distante Oeste por quaisquer ruas e modos, ou corrente findada no mesmo extremo e inimaginável Oeste de seus primevos.

Quando começa ou quando termina. A linha do susto ao último descanso. O tempo tão curto na alegria e longo no entristecer. O sentir, ver, em um inumerável de sensações, no infinito da possibilidade. Vez por outra as engrenagens das coisas acertam nossa subjetividade com mais violência. Do espanto, nasce tudo. Grandes e pequenos fenômenos... Na perda, sentimos o peso do mundo.

Estávamos concentrados. Não seria do agrado de meu avô a vigília dolorida, o sofrimento velado. Ninguém ali poderia compreender o enganoso abandono, mas tão somente nós; eu, meu pai, meu avô. Caminhamos, conversando, e voltando depois para os procedimentos formais.

Não seria outro seu feitio. Tinha cá, no sangue e na memória, enormidade de sua personalidade. Em um olhar, em uma maneira, em um jeito de entender. As pessoas não partem e levam algo de nós /Deixam. Uma pequena esperança que evapora, ou a comoção de muitos e muitos momentos; tudo deixa e vai, passa, marca, e vai. Garimpamos nossa vida, pendemos para um lado, lançamos e tomamos fora.

Da túmula japonesa, não esqueci. Da tarde, do caminhar. Do meu avô absoluto em sua cadeira. Vai tudo conosco. A doença, os conflitos... Sombras e penumbras daquela tarde nublada, e nada mais.

A Roupa do Rei



Dingle Behn pensava no Honesto Abe - daquele livro engraçado sobre vampiros. Olhava para o teto em profunda inquietação sobre as férias. Mulatinhas latinas, ou meditação oriental? A dúvida o atormentava. "Nos bons tempos existia trabalho. Agora, nada de russos, nada de chineses, nada de cubanos. Acho que vou passar na terapia".


Caminhou quatro metros; entrou no elevador; saiu dezoito andares abaixo: Recursos Humanos do Pentágono.


- Muito bem, Sr. Behn, como vão as coisas? E o pequeno Dave?

- O pequeno Dave, Samantha, já é um meninão. Recebeu a chamada do M.I.T. ontem.

- Legal.

- Eles crescem e você nem vê. Como vai a vida? Vai sacal. Sem espionagem decente, só esses piolhos árabes e suas idiotices hereges, Dave no M.I.T. Meus pais voltaram para a Holanda, sabe? Estou sozinho.

- Você é divorciado?

- Graças a Deus.

- Ai, Behn... O Takau e o Rodriguez devem passar o caso dos protestos na Albânia para a sua jurisdição.

- Eu sei, eu sei. Takau, Rodriguez, ninguém aqui tem nome inglês já reparou?

- A América é o mundo Behn.

- É pra isso que ganhamos nosso salário.


Riram. Papos de escritório. Entrou.


- Muito bem pessoal colocando os problemas para fora. Livre. Isso. Ei, Has, não faça isso na Humani, sim? Nos pilates. Relaxando.


Terapia, aquela coisa. Então a segunda parte: conversa;


- Meu nome é Dingle Behn.

- Oi, Behn.

- Dingle? Não é Dinglee o certo? - calado Has - Desculpe, mas o certo é Dinglee.

- É melhor calar essa boca, seu cretino... - Behn, calma - ... Tá bom, tá bom. Olha, direto ao ponto o Leste Europeu era interessante, entendem? Tinha os soviéticos, e a Guerra Nuclear. Hoje não. Está chato agora. Sabe, eu não sei. Sei lá. Tinha a Liberdade e a Servidão, né? Os malditos inimigos ateus e enganadores pobretões e sacanas, as pequenas burguesias provincianas pra calar... Mas... Está tudo depressivo... - depois de um bom quarto de hora debulhando geopolítica - Na verdade entrei em uma crise da meia idade.

- Acontece com todo mundo, Behn. O Rodriguez está passando pelo mesmo - Ontem comprei um McDonald's em Havana, e chorei - Sim, sim, fale, quero todos abrindo seus corações.


O pequeno Da Silva resolveu abrir a boca também. O "Da Silva" era bom apenas no Mardi Gras com as bestas do Sul, e nas Copas do Mundo, no resto nem sabia português nem conhecera seu avô latino. Caladão. mas naquele dia, foi o assunto da semana e ainda é o melhor assunto nos tediosos corredores do Pentágono:

- Eu matei o Bin Laden.

- Foi o você? - todos perguntaram, incluindo a terapeuta.

- Descobri a morte dele em 2008. Eu sou da Oriente Médio.

- Legal, cara - É isso - Pegamos o porco, não? - deixem ele falar.

- ... Eu não sabia se o Governo divulgaria a morte dele nem nada, fiquei com medo de ser punido ou morto por saber demais, mas, vejam, minha mulher me acordou e então vi na TV. Foi mágico, caras. Foi bom demais.

- Estão vendo? É assim que eu quero todo mundo. Motivação. E agora, vamos para a música...

- Eu estou me sentindo o porra do Capitão América! - exclamou o feliz Da Silva.



Foi uma das muitas reuniões terapêuticas divertidas em Washington.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Realidades inusitadas


"Eu não faria isso, calma".


Sempre ouvi do senhor meu avô, de ventura detetive: "Não dê tempo de reserva". Queria dizer; quando atacar o feito, faça de viés definido. Titubeio, sim-não, sem-razões de hesitar, quase sempre são prelúdios de fatalidade, perda, ou mesmo morte.

Mas ele estava mesmo entusiasmado. As pessoas realmente pensam que no improviso acertado é e basta o extraviar. Sair do comum. Vezes há até no sair do comum o comum da coisa, e nem sempre sair do comum é mudar, e mudar, por mudar, nem sempre é algo além do mesmo. Todo baterista conhece essas verdades nos pulsos. É como o sujeito que joga um pincel lamacento no quadro e chama de "arte". Ampliando a imagem de consciência.

Faço rodeios como se vê, pois o assunto é delicado. Todos sabiam do comportamento alegre de Aldonça - Valha-me o Diabo um nome assim! - suas saidas, seus sorrisos, brincadeiras desapropriadas. Em roupas e falas e nas experiências de seus afetos era assim uma deleitável de confiança. Vulgar não seria nunca uma palavra justa. Ela estava satisfeita naquela promiscuidade de escolha. Uma vaga de emoções flutuantes distantes de instintos e razões. Uma patrícia romana em sua simplicidade...

Quem acreditaria que ele sujeito casto aconteceria?

Quero dizer; ele não se apaixonou mesmo pela figura? E ela, não correspondeu? Não namoraram? Seria possível. Teimei em acreditar. Ela viu algum truão cobiçoso em sua simpleza sexual, ou foi algo mais profundo? E meu amigo que agora fala tanto em suas desconfianças que bem sei acertadíssimas, não foi capaz de perceber sua volúvel Capitu?

Um Sancho Pança e Capitu. É como vejo com meu olhar criticista. Ou coisa que o valha com mais sabor.

Parece que falo de dias ou meses. Não. Anos. Meu bom Pança viveu no mesmo teto de sua profana casta. Terminado o encantamento? Fala assim - vejo o olhar nervo e questiono comigo - quer descobrir os segredos de sua Pequena.

Eu não vou meter colher.

Fala de descobrir, revelar. Será possível?! Espera mais alguma palavra de abrandamento, um consolo, um alívio, uma advertência. Finjo trastulo tudo ignorar. Implora em seus gritos por uma prova de negação. Suspira em benefício do tempo. "Esquecer, tudo será como antes". Um antes que efetivamente nunca existiu.

Exaspera, levanta, segue determinado. Diz estar armado. Duvido muito. Ele não aparecerá no Motel. Ele sabe, ela sabe, nosso outro amigo com ela sabe. Intimamente. Dormirá, estaremos amanhã no serviço, falaremos de futebol. Não; ele sabia, e prefere o doce sabor da ilusão por escolha consciente.

Um mundo engraçadíssimo, o nosso.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Acústica da noite


"Três ruas depois do ponto de encontro da praça, lembra?", mesmo segundo andar de velho edifício e estreito, "cuidado com a travessia, aumentaram a rua". O vulto magro; um amigo de outros tempos, um conhecido distante hoje; segue falando sem parar. Não sei qual me deu, mas estou mesmo aqui.

Bateria no fundo, vazia, de cor escura e marca popular. Faltou o baterista. Tecladista decai nas teclas, os seis ou sete presentes escutam distraídos. O baixista acompanha lento, mais rápido, um improviso, dois, segue. Uma menina canta "Dindi", Vaughan (É uma sorte, sempre foi a minha cantora favorita e não é lá muito cantada aqui). Tão marasmado o lugar, igual.

Vou ao balcão. Tomo um gole de algo quente. "Devem... Já nem lembro". Não me reconhece. Tanto tempo depois sou mais um cliente. Mais um. Nem melhor, nem pior o lugar. E eu?

Não reconheço ninguém, só o barman que não me nota. Estou assim mudado de aparência? Nada. É o tédio de mais um dia mais um dia, vendo os mesmos sujeitos e as mesmas atitudes de todos que encontram. Os olhares de distração. Nos melhores momentos, de confusão, nos momentos de cover, descontração. São os gostos do silêncio de vida, gritando solto ou sussurrando. No meu ponto de vista, o depois é o verdadeiro prazer.

Nas calçadas tocando algo, nariz vermelho. É assim que gostam de ficar e morrer. E nem se culpe, nem se culpe de nada.

"Você é o baterista de hoje?". Diz enfim o barman. "Não te conheço? Vini, Aaron... Sidi, né?"

Fala dos causos, conhecidos, desconhecidos. Os sumidos, os perenes. Trocando ideias enquanto espero meu amigo baixista também. Tinha entrado em conversa com o dono da casa; "antigo dos nossos, o Sid, então, está aí. Vamos tocar umas e outras". A menina muda, e volta em Chico - já estão chateados, e assim satisfeitos, vez por outra só querem melancolia. Estúpido tudo no melhor dos sentidos.

Aprisco de pequenos anseios.