quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Fantasia e fuligens III


Arturo, o meio-elfo.

Quem vê seu rosto bonachão cantando assim a garçonete, aqui, na birosca mais suja da cidade. Em sua noite de plantão. Não, nem pode imaginar sua curiosa vida.

Sua tez amarelada. Tom meio que bege, pardo. Vê aquela cicatriz? Bem abaixo do nariz? Sim... Ferimento de guerra. Não sei de qual guerra ou em qual século.

Um estilhaço de bomba. Eu complemento.

Eu não tenho interesse em política. Não quero e não vou entrar no âmbito do genocídio elfo, suas razões ou consequências. O que eu sei? Aquele cara ali sentiu na pele. 10 anos atrás quando entrei no departamento, ele já era veterano. “Vim do norte”, ele vai dizer se perguntar. Depois de um tempo nas ruas um sujeito aprende a arte de ler os outros. E sobre o Arturo eu posso te dizer: aquele meio-elfo ali merece uma noite de farra. Brindemos.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Fantasia e fuligens - II



O caso é que eu sou um detetive. Quase dedetizador em um sentido mais exato. Lido com um dos problemas metropolitanos menos convidativos ao debate público: mistificação ilegal.

As cidades crescem. Velhas florestas morrem. Locais sagrados, seres protetores, ritos: a civilização tudo traga. E quando em vez algo regurgita.

Um espírito de riacho louvado por nativos em dado ponto é cercado por muros. Asfalto. E seu rio é drenado. Os sacrifícios deixam de vir.  Ele se transforma. Degenera. O menino-do-pé, ou a moça-de-rio, tomados em barro, gasolina, óleo, produtos tóxicos pelo esgoto. É alterado em elementos porosos, rudes, escuros. Aquele ente simpático vira um monstro espectral causador de distúrbios. Existem muitos por aí. Esgoto, Urbanismo, Infestação... Quase todos conhecem meu rosto.

Veja bem: eles não morrem, são retraídos.

Caras como eu ganham 3 míseros salários mínimos pra isso. Um carro de patrulha, poucos e gastos equipamentos de caça espiritual. E o porquê de aturar um serviço louco desses? É complicado responder.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Fantasia e fuligens




Um anão morto. Na esquina entre as ruas principais para maior espanto e bafafá.

Não digo um anão no sentido sujeito baixo atarraco avaro do tipo caxias confesso. Um anão: criatura setentrional humanoide, meio homo meio roedor, olhos vermelhos nariz longo barba. Sem suas plumas e arrogância não são nem agradáveis de se ver. E na verdade deve ser o primeiro anão que vejo ao vivo.

Anões, naturalmente, são incomuns nos baixos trópicos.

- Você sabe, na Alemanha a cidade subterrânea de Frankfurt é tão grande quanto a cidade de cima. Dizem.

Quem comenta é um parceiro meu, tão setentrional quanto, embora mais comum. O meio-elfo Anturo. Nunca vou me acostumar com sua personalidade. É meu amigo, digo, confio mais nele que em qualquer outro neste nosso ramo de serviço público. Ele é meio-elfo como qualquer meio-elfo por aí, e como qualquer elfo devia ser.

- Planeta Terra chamando, de Sá.

- ... Não acordei bem hoje.

Quando digo que não acordei bem quero dizer: acordei meditativo. E racionalizar, pode apostar, não é a coisa certa em um serviço como o nosso.

- Vamos aos trabalhos.

- Pois bem, pois bem. Meu amigo de raízes aqui não morreu de morte natural. Ou não estaríamos olhando seu pequeno cadáver – o humor de Anturo é plenamente inadequado como se vê – As marcas plasmáticas, estamos lidando com Urbanismo aqui?

- Pouco tempo pra ele dar as caras outra vez.

- Urbanismo, Esgoto, ou algum animismo novo. Antigamente um espírito furioso e confuso do século anterior era o maior dos nossos problemas. Agora? Nem mesmo sei de quais profundezas saem esses... Fenômenos. Fica difícil trabalhar assim.

- Reclama com a procuradoria.

- Estão pouco se lixando pra nós.  Aliás, quando foi que o mundo fez sentido?

Estou de saco cheio. Do mundo, do meu serviço, da comida congelada intragável de toda noite. O caso do anão morto vai dar trabalho. Um anão? Aqui? Ninguém pode negar a globalização. O carro velho cruza as ruas; o dia amanhece; deixo Arturo e sigo pra casa.

Quando você para e pensa percebe que a vida não faz sentido mesmo.

Do meu apartamento a multidão que passa lá embaixo. Criaturas florestais, homens, mulheres, coisas mais. O canivete. Meu canivete...

No céu nuvens giram ao movimentar do canivete. O canivete pode mover o ar, descolar ventos, criar tempestades. Inundar e destruir. O último fragmento de uma ordem de paladinos monitorando as ruas sujas de uma cidade qualquer. Nada faz sentido mesmo.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Monstros marinhos




Quando se mora sozinho o barulho da tv é uma quebra do silêncio. Quase um diálogo. A água bate na cara, relaxa os músculos, música na cabeça. O mundo diminui: ferve o bule, sorverá o café, chuva lá fora, calha guia, guaraná sujo de caju  Preciso comprar uma banheira. Preciso ler os cadernos. Alguém lá fora precisa mesmo de um guarda-chuva, a vida corre sem rumo em uma noite de chuva. A chuva, lava o mundo. A toalha seca o cabelo. No espelho: o reflexo. Um pensamento. É-se o rosto da rua, ou um rosto lavado?



segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Partículas em suspensão


Rosto inchado e a sensação típica de degringolo de vida. 21:59 da noite a página continua em branco. Continua em branco. Descaso do mundo, Universo em sono, cada partícula suspensa no ar. Olhar vazio num mar branco de pensamentos nulos. Cada olhar ao teto com o sentimento nulo. Cada tamborilar dos dedos um som qualquer fortuito. A mente divaga. Divaga sem ideias. Grande salão frio de mármore sem ideias. 22:14 sem ideias. Quem é nosso amigo? Advogado, escritor, jornalista, ou professor. Um profissional liberal. Um adicto da angústia criativa. Ser dado de informação ao longo de séculos em discretos verbetes, salvar a vida de um culpado, os ursos do Canadá e fazer a melhor análise de Roma para 22 alunos na manhã fria de chuva. Ele hesita. Tempo passa e ele larga. Até o fim do dia estará dormindo. 00:01, e seu mundo escureceu