Um anão morto. Na esquina entre as ruas principais para
maior espanto e bafafá.
Não digo um anão no sentido sujeito baixo atarraco avaro do
tipo caxias confesso. Um anão: criatura setentrional humanoide, meio homo meio
roedor, olhos vermelhos nariz longo barba. Sem suas plumas e arrogância não são
nem agradáveis de se ver. E na verdade deve ser o primeiro anão que vejo ao
vivo.
Anões, naturalmente, são incomuns nos baixos trópicos.
- Você sabe, na Alemanha a cidade subterrânea de Frankfurt é
tão grande quanto a cidade de cima. Dizem.
Quem comenta é um parceiro meu, tão setentrional quanto,
embora mais comum. O meio-elfo Anturo. Nunca vou me acostumar com sua personalidade.
É meu amigo, digo, confio mais nele que em qualquer outro neste nosso ramo de
serviço público. Ele é meio-elfo como qualquer meio-elfo por aí, e como
qualquer elfo devia ser.
- Planeta Terra chamando, de Sá.
- ... Não acordei bem hoje.
Quando digo que não acordei bem quero dizer: acordei
meditativo. E racionalizar, pode apostar, não é a coisa certa em um serviço como o nosso.
- Vamos aos trabalhos.
- Pois bem, pois bem. Meu amigo de raízes aqui não morreu de
morte natural. Ou não estaríamos olhando seu pequeno cadáver – o humor de Anturo é plenamente
inadequado como se vê – As marcas plasmáticas, estamos lidando com Urbanismo
aqui?
- Pouco tempo pra ele dar as caras outra vez.
- Urbanismo, Esgoto, ou algum animismo novo. Antigamente um
espírito furioso e confuso do século anterior era o maior dos nossos problemas.
Agora? Nem mesmo sei de quais profundezas saem esses... Fenômenos.
Fica difícil trabalhar assim.
- Reclama com a procuradoria.
- Estão pouco se lixando pra nós. Aliás, quando foi que o mundo fez sentido?
Estou de saco cheio. Do mundo, do meu serviço, da comida
congelada intragável de toda noite. O caso do anão morto vai dar trabalho. Um anão?
Aqui? Ninguém pode negar a globalização. O carro velho cruza as ruas; o dia
amanhece; deixo Arturo e sigo pra casa.
Quando você para e pensa percebe que a vida não faz sentido
mesmo.
Do meu apartamento a multidão que passa lá embaixo. Criaturas florestais, homens, mulheres, coisas mais. O canivete. Meu canivete...
No céu nuvens giram ao movimentar do canivete. O canivete
pode mover o ar, descolar ventos, criar tempestades. Inundar e destruir. O último fragmento de uma
ordem de paladinos monitorando as ruas sujas de uma cidade qualquer. Nada faz sentido mesmo.
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