quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Louis Sutter




A pintar quadros lindos e perfeitos,
a tocar no violino sonatas sem defeito
e lindas - A Kreutzer, à Primavera -
aprendi, já faz tempo, quando jovem
corria para o mundo aberto e claro:
eu era moço, era louvado e era amado...
Mas certa vez me olhou pela janela,
a rir com a maxila descarnada,
A Morte - e o coração
gelou dentro de mim, gelou a mim
e me gela ainda hoje. Eu escapei,
vaguei de um lado para outro,
mas me pegaram e me puseram fechado
ano após ano, da minha janela,
por entre as grades, ela me arregala os olhos
e arregalada ri. me conhece. Ela sabe.
em papel grosso às vezes pinto homens,
pinto mulheres, pinto Jesus Cristo,
Adão e Eva, o Gólgota,
não perfeitos, não lindos, mas sentidos.
Com tinta e sangue eu pinto, com verdade,
e a verdade é terrível.
Recubro a folha, risca sobre risca,
mais alta, mais grudada, cinza, prata, preta,
e as pontas dos hieróglafos
deixo escresparem-se espalhados feito musgo
crepitarem como granizo seco, afilarem-se em espinhas de peixe
Cinzentos véus, redes de linhas finas, teias de aranha,
vento na relva, trança de raízes, caligrafias,
rabisco dez mil linhas em blocos e mais blocos,
lisas, inchadas, arrepiadas,
em plumas flamejantes, empinadas, esquivas,
poupo aos rabiscos os corpos de neve,
jogo Jesus no chão
sob o fardo da Cruz, voejam pássaros
como espectros num matagal de sonho, flores em flocos
a rir aflitas entre ervas murchas.
Eu às vezes esqueço,
eu às vezes conjuro tanta angústia,
eu às vezes escuto de distantes
anos de sombras, muitos anos, música:
Sonata a Krautzer... Mas na janela
sei que, nas minhas costas,
riem de mim.
Mas quem me conhece, quem sabe – é Ela.

(Hermann Hesse, Andares. Trad: Geir Campos)

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