terça-feira, 16 de novembro de 2010

Nota de delírio


"To absent friends, lost loves, old gods, and the season of mists; and may each and every one of us always give the devil his due"

("Hob Gadling". Neil Gaiman, The Sandman)


A névoa do Porto fica mais densa que o habitualmente denso, e conserva mutante comigo saberes perdidos;

"Por todos os deuses, Homem, conte com o maligno acaso na horá má, e saiba que melhor é cair com os olhos fechados!"

Dizia assim velho baldo carcamano; Trépido; como citando uma frase de guerra ininteligível ao seu medo. Velho lobo. Dizia também ter conhecido Teseu, Orlando o enamorado e o furioso, Tamerlão, John Bart e Barth, os três cavaleiros de Pompéia, Caxias em Avaí. Arrogava ser o velho mais velho de espírito e mais moço de alma. Contava ainda navegando quase dez mil e tantos anos quando - morreu de repente. Morreu na cama, como se diz. Infausto fim inevitável de grandes corações.

Conheci bem seu onomástico, bem e baldo. Atravessador dos transmundos garboso, dos altos montes e das várzeas rápidas, dos gemidos alegres, dos aflitos berbéres, dos ditos de mandos, dos campos mandados, doutos chapelados, loucos enamorados.

Fui tripulante-agrimensor de reserva em seu navio, e nele mesmo perdi minhas duas pernas [Ataque de Leviatã, como digo]. Azar não morrer de pronto, como se diz também. Coisa funesta. É ver seus olhos enormes, censurando todas as coisas, e sua bocarra de todas as comodidades. Veneno fatal, vil apático. Sorumbático nadei. Desfalecendo em modorra de areias.

Digo o fato. Não conto mais que duzentos anos, amancado permaneço no Porto. Se conto? Com quantas conto? Conto causos em causas aos transeuntes que por maligno acaso cá acabam. Dentre céus e nascimentos, dentre os Infernos e os mementos, no eixo inverso de vazio e caos, promontório do Nada-Mundo, conta cá cantos um danado aleijado.

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