sábado, 19 de fevereiro de 2011

O Sentido da Visão


Tenho uma pequena cabana em um circo velho, sujo e quase falido perambulando de subúrbio em subúrbio. Sou conhecido como "Tarkan, o magnífico": é assim que me apresento em todos os lugares, como se em algum lugar eu fosse conhecido como magnífico... "Bem sei dos teus pensamentos! atravesso as entranhas das almas! Descubro segredos e medos. Posso anular demônios, descer deuses, conversar com espíritos": diz minha propaganda.

Eu sou um ilusionista, um ilusionista mais profundo, um paisagista de reações emocionais. Alguns diriam que faço charlatanismo, que vendo esperanças vazias, acontece que dou aquilo que as pessoas esperam receber. Elas esperam receber de Tarkan, o magnífico, o alívio interior; a resposta e a saída. Catarsis, pão, circo, pensamento positivo; a satisfação se basta. Dê um escapismo, uma válvula, um canto de bode para abandonar o Eu e as dívidas, os problemas e as adversidades. Dê um cado de Nada, e o peso do Todo diminui.

Mas estou longe de ser um excêntrico aproveitador, tenho minha ciência. Tenho minha lucidez. Sou como Epicuro, filho rebelde da superstição. Aprendi em velhos livros minha própria retórica. Com meu antecessor, o primeiro Tarkan - meu pai adotivo - aprendi os segredos da empatia. Vi que os homens criam seus demônios e anjos.

Eu, mediante os fatos que relatos, aceitei o niilismo e a negação. Acredito entretanto no poder dos sentidos, em especial no dom da visão. De grandes capacidades óticas são feitos os gênios e os loucos e que dificilmente se diferenciam. Posso contar uma anedota do homem que acolheu um bebê abandonado em uma roça pútrida, eu, e suas desventuras...

Meu antecessor, meu pai, meu professor, retirou a palavra Tarkan de algum dicionário de velhos dialetos nórdicos. Francês de origem e julgando-se "estudioso de Estéticas", jamais relevando nada além. Dizia ter sangue nobre, estudado na Sorbonne, conhecido grupos esotéricos, participado de reuniões da Zos Kia Cultus. Velho sempre. Seus olhos obstunados com princípio de catarata esbugalhavam, balançava os dedos e dizia generalidades logo absorvidas pelas plateias como mensagens íntimas e revelações místicas. Criou todo o personagem que apenas utilizo. Acendia incensos, preparava um ambiente sufocante com perícia visual. Em seus melhores momentos brilhava ofuscante como um quadro de Rubens - pintor que adorava. Lia seus livros góticos e tremia em suas muitas aspirações. Dizia não ter sido compreendido, comentava fatos que se contradiziam e confuso citava pessoas, tinha fé completa em suas visões mesmo estando em um circo e servindo ao delírio ou deboche de gente simples. Um nada o faria mudar, e sua escalada transcendental que o rebaixou de nobre francês a curiosidade circense de subúrbios bem poderia ser o encanto que impões a si.

Tinha visão, meu velho, e foi devorado por ela. Aprendi com ele o ilusionismo, falseabilidade de sensações que seu fervor não aceitaria reconhecer. Mas na loucura dele compreendi uma lucidez desesperançada. Eu o temi em seus devaneios. Não me culpo.

Uma visão mais dada aos detalhes, demorada de foco, abrangente. Uma visão relevadora dos pequenos espasmos do corpo, de suas mínimas reações. Uma visão que interprete com largura e profundidade. É a visão daqueles que sofrem a dor dos miseráveis e que sonham os altos montes. É a visão que transcende ou pensa transcender. É a visão do gênio em seu quarto desbravando silenciosamente os duros segredos de alguma Física e que serão luz em tempos futuros, é a mesma visão de um velho doido e suas magias que morreu em obscuridade.

As pessoas poucas aos poucos entram no terreno do circo. O trapézio surrado recebe aos poucos senhorinhas e seus netos aborrecidos com o lugar. Uma ou outra entra em minha cabana. Revelo pensamentos e pretextos, decifro sonhos e defino futuros.

Nenhum comentário: