segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Notas de lucidez.


Loucura e os sãos:
Saio feliz com a carta de demissão no bolso. 7 anos em um hospital psiquiátrico, para nunca mais, agora só Médico da Família. Encontro Karen na rua de frente, tomamos o táxi. Cai a tarde, serena, como poucas vezes em muito tempo.

Minha noiva quer me convencer e fala insistentemente, quer um romance sobre meu trabalho com os loucos. Ela escrevendo, digo, partindo do meu testemunho. Estou quase comprando a ideia. Trabalha com publicidade, minha pequena, acredita ter o insight da coisa toda.

"O tema da hora", diz, "é saber dar o glamour mórbido do tipo".

Nada médico, lírico e assim moderno. Nada denso como a Casa dos mortos do russo, ou cru como o Cemitério dos vivos de Lima Barreto. Quer algo lúgubre e lúdico como Rain Man, perfil gênio incompreendido, ou no viés tragicômico de um Forrest Gump. É necessário pesar a assimilação favorável do público. Diz enroscando pelo meu braço magro, o seu corpo macio, enquanto penso n'outras maneiras...

Nem todos ali nasceram engendrados erroneamente. Vi muita lucidez, perdição, remorso por aqueles corredores. Vi gente tão hermética em suas ilusões que pareciam mais felizes do que eu: nunca conheceram nada além da própria insanidade. É viver em uma calma triste, um desespero solene. Não, eu não iria gostar de escrever sobre loucura. Vi muito, conheci demais - dizem que a beleza de uma paisagem está também em desconhecê-la.

Certa feita encontrei um louco perigosíssimo. Histórico funesto, porém insalubre de atitudes e sóbrio como o mais pacato dos sujeitos. Em uma terapia com filmes, mostrou interesse por Moby Dick. Com toda a sua crueldade fria reconhecia em si Ismael. Dei os livros de Herman Melville, e recebeu tudo com vivo interesse. Typee, Moby Dick, Billy Budd. Dizia gostar muito, mas dele já nada sei.


****

Vindimador:
A coisa toda começou na minha infância. Violenta. Una uma criação problemática ao nefasto de uma patologia e você terá um sujeito como eu. Pratiquei e sofri bullying, passei por psicólogos, frequentei reformatórios, fui preso.

Dependendo de pessoas como a tal Ana Beatriz eu passaria bem a vida apodrecendo em uma solitária.

Acontece mesmo que eu não sou normal, comum. Vivo em vazios e extremos. Passo da apatia ao mais alto grau de agressividade - acumulando motivações subjetivas, sem dissipação apropriada (dizem). Eu sou perigoso, eu sou recatado e tenho alguma cultura, eu vivo sozinho.

A solidão em fato é diferente do imaginado popular. Poucas pessoas conhecem alguma solidão além de um mal-estar episódico ou qualquer decepção sentimental. A solidão é como nos romances de Herman Melville.

Reunião de grupo toda Terça. Meu único compromisso. Sou pensionista, dependente da minha família, mas vivem lá as vidas deles. Eu vivo a minha vida.

E todo dia, todo dia, é mais de muitos ainda, no maior dentre os tédios; o tédio feito da contínua aflição. Ininterrupta.

O cobrador, com seu troco errado. O esbarrar na rua. Os gritos, dos vizinhos. O ladrar dos cães. E tocam minhas paredes, e minhas roupas, e minha mão, e ofereço meu sorriso forçado, por vezes, mas não me incomodam. Nem com meus sacos pretos pelas noites.

Em um quarto separado. É uma matéria que eu gosto de manter discreta; e não comento sobre ela nos encontros. Bem, bem lá. Deixando os livros, os remédios, e a TV ligada para escutar conversas. Bem, bem ali. Tenho minha faca, e minha mesa. Cheiro de açougue, ruim até se habituar. bem, bem aqui. Horas, horas, dias. E assim vou levando.

Temos poucos gatos, pelas redondezas. Minhas distrações, minhas uvas.






OBS: Foto; The Dangerous Mind of babcocks.

Nenhum comentário: