sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Trânsfuga


Semanas, meses, bem sabia da tuberculose. Suores, peso nas costas, uma tosse persistente que teimava em desculpar, um cansaço terrível que o dominava a cada dia. Calou o ponto.

Todos os domingos, descia ao púlpito. Contava a respeito da imitação de Cristo, e das coisas da fé. Palavras, gestos, lágrimas, olhares; cerimônia. A mulher, o filho. Bilhetes postais dos pais, passando pela África do Sul; velho marinheiro, e a senhora sua esposa, mãe, felizes. Convites, encontros, reuniões sacerdotais. Vida na linha certa, venturosa, resultante.

De fato, amava sua Heloísa, e de fato, o pequeno David. Feliz vivia, e como não seria assim? O cândido pastor da vizinhança. E em quantas não ouviu as lamúrias de todos ali? E quantas vezes não os sarou em esperança, dos desesperos? E quantas vezes não sofreu a dor daqueles? Não viveu a dor daqueles? Calou o ponto.

Estava tuberculoso. E como são, permanecia em vida, igual. Era o grande pai, ou o intermédio do pai, dentre gente sem luz. Não desejava mostrar fragilidade, ou pausar sua obra, mas não estaria esgotado de si mesmo? Não amaria mais a esperança do que a vida? Definhou em compaixão, como quem bebe de um cálice amargo.

Cuspira sangue, no banheiro da igreja, após mais uma reunião como as outras. Tateou a esmo pelas paredes, olhando turvo ao seu redor; tão fraco, tão dependente. Logo acudido pelos irmãos, levado ao hospital. Morrendo pouco tempo depois.

Nenhum comentário: