quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Mársias

"O grande rei tem também seu palácio em Celanai, uma fortaleza, sobre as fontes de um outro rio, o Mársias, na falda da Acrópole. Rio que transpassa a cidade, direto ao Meandro, mede cinco ou seis metros de largura. Dizem ser nesta várzea que Apolo enforcara Mársias, por ocasião do grande concurso de música das divindades tais. Arrancando a pele do sátiro, nas cavernas das quais brotam suas águas; daí o nome de Mársias.

(Xenofonte, Anabásis)







"A porra não cai longe da pica"; dizia o odiado senhor meu pai. Verdugo infame, indolente e falastrão como eu. Ignorei a influência de meu velho pai até o perceber-me como ele. No após de alguns anos e lances errados, apostas equivocadas, esperanças baratas, vagando semi-imundo pelos ladrilhos deste litoral tocante, eu me encontro com o êxtase gerador: "A porra tornar-se-á também pica"; não acrescentou.

"Tomem de meu fluir, sou rio,
e agora pois Mársias;
e que não se detém pelo Sol"

(Mas, estando bêbado de fato, jamais pensaria em pai, Sol, ou litorais tocantes)

Duas, três taças, fico valente, alegre, ávido. Na sexta e na sétima todos os frágeis sofrimentos redobram em minha memória turva, e passo os próximos copos meditabundo. E falam e falo também, e brincam e brinco também. A bebida engorda no sangue, e tudo segue seu próprio caminho. Mal percebo já estou com uma dama. Mas, por vezes, apenas o caminhar e o silêncio desejam intimidades. Ficando como espantalho mero guarda botas, pedra lascada, batendo de calçada em calçada.

A consquista vale mais do que a alcova, o flerte, blefe, o olhar e o falar manso, pérfuro e contundente. Não existe glória no simples fazer. É necessária a ilusão. E, embora sendo a mentira de inumeráveis rostos que sou, por vezes a ilusão se ilude.

Não, não temo escuros. Não temo o laço do passarinheiro - Sou peste perniciosa. Meu riso ultrapassa até mesmo por lágrimas, e nada no céu ou na terra amedronta minha melancolia faceira.

"Satírico desmazelado,
abraço, na rima compasso, quem sabe imberbe...
Que se dane!"

Chão frio da rua marca irregular caminho meu. Sombras nos cantos recobram minhas lamúrias. Vacilo em picadeiro pedalando por abismos. "Nada retorna", diz meu mais novo demônio: "Não retornarás".

Aglutinam-se todos, todos travestidos de anseios e medos, em nosso mais longo pernoite.


FOTO: Tormento de Mársias, Ticiano (1570 - 76).

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